Michel de Montaigne: o saber e a linguagem

Em tempos pós-modernos e do ferramental tecnológico, onde se escreve menos, o texto apresenta algumas considerações pertinentes acerca de palpitante tema: transformar linguagem oral em linguagem escrita. A tarefa do jurista pós-moderno.

                      MICHEL DE MONTAIGNE: O SABER E A LINGUAGEM

O ensaísta francês Michel de Montaigne [1533-1592][1] não é há de ser considerado um pensador apenas e tão somente de seu tempo, do século XVI. Sua forma implacável de ver o mundo; seus escritos e conceitos – enquadráveis nas mais variadas situações vivenciadas pelo homem moderno [ou pós-moderno] -, também são deste tempo. Em uma época considerada como pós-moderna [sendo que no Brasil há uma modernidade tardia], tão conturbada, por assim dizer; com a sociedade humana carente de valores, princípios éticos e morais; em tempos onde imperam, é bem de ver, o marketing individual e o coletivo a respeito de tudo; as lives; em época onde viceja na humanidade o aparentar ter, ignorando-se por completo o ser; em período de descrença profunda, inclusive em relação a algumas instituições criadas pelo homem, o senhor da razão – fato esse que acaba gerando certo cepticismo por parte da sociedade em geral -, os textos de Michel de Montaigne se mostram mais do que atuais e merecem acurada leitura, porquanto há uma crise generalizada, principalmente no que diz com o comportamento humano.

Com efeito, Os Ensaios, bem como o Diário de Viagem [fruto de sua viagem à Alemanha, Suíça, e Itália, e que perdurou de junho de 1580 a novembro de 1581][2], cabem ser lidos, relidos e bem compreendidos pelo hodierno construtor do direito [sim, construtor e não operador do direito, como se diz por aí]. Com isso, o exegeta certamente buscará perceber algumas das várias questões subjacentes, nem sempre vistas pelas lentes embaçadas do jurista [o hermeneuta], que não raras vezes ainda está atrelado à filosofia da consciência. Aliás, como bem assevera Lenio Streck, os operadores jurídicos também não conhecem as suas possibilidades hermenêuticas de produção de sentido, e não menos certo que vem ocorrendo aquilo que tal autor denomina de inefetividade da Constituição[3]. De fato, é de somenos relevância o título, o rótulo que se possa conferir ao momento histórico sócio-econômico, cultural e político brasileiro, especialmente a partir da segunda metade do século passado, e que se vem propagando até os dias atuais, como mais ênfase em tempo de crise sanitária mundial.

O que sobreleva dizer, isso sim, é que os dois vocábulos objeto do título deste singelo texto – cuja profundidade [e extensão] deveriam ser observados à saciedade e de forma diária pelo profissional do direito – foram examinados pelo ensaísta de maneira equilibrada, sensata e prudente [como de regra, no seu proceder diário], e cujos ensinamentos estão dispostos nas obras mencionadas. Diante de tal fato, cabe o presente texto ancorar-se, quanto possível, nos escritos de Montaigne e trazer a lume algumas das teses [ou sentenças, axiomas] que conforme exposto se mostram mais do que atuais. A propósito, bem poderia o hermeneuta moderno espraiar seu conhecimento, debruçando-se sobre os axiomas de Montaigne (assim como os pensamentos de outros filósofos, inclusive estóicos [especialmente Sêneca]), a fim de melhor compreender o momento jurídico atual.

Deslizando sua pena de forma livre, tranquila e solta sobre o papel, e sem qualquer compromisso com reis ou mesmo com quem quer que seja, Michel de Montaigne trata de assuntos de fôlego, de grande envergadura e profundidade, sendo que até mesmo aqueles mais espinhosos e complexos [como a morte, por exemplo] são analisados de forma especial e não raras vezes com inequívoco viés cáustico,  cuja modernidade é facilmente perceptível.

Nota-se que Montaigne escreve com estilo bastante contundente, mas de forma elegante e bela, conduzindo o leitor por caminhos desconhecidos com o escopo de demonstrar que os homens são atormentados pelas idéias que têm das coisas, e não pelas próprias coisas[4].

 Até mesmo o advogado, o juiz e o próprio Brasil não escapam da pena do filósofo, que a molha na tinta do bom senso, da prudência, da razoabilidade, do equilíbrio e da moderação, para expor seus pensamentos de forma clara. Com efeito, atualmente alguns temas talvez não ganhem o relevo deveras importante e necessário por grande parte dos construtores do direito, mas deveriam ser analisados, a fim de perceber qual é o real papel a ser desenvolvido pelo jurista pátrio neste momento histórico, tudo com esteio na Constituição Federal de 1988, e até mesmo para que não ocorra estratificação do pensar, especialmente daquele que defende os interesses alheios.

Certamente, com o ferramental jurídico próprio em mãos, a começar pela utilização correta do próprio texto constitucional – especialmente o catálogo de princípios[5] -, poderá o hermeneuta, de fato, compreender [e absorver] a tese de que não mais prevalece a filosofia da consciência, mas sim há de preponderar a hermenêutica filosófica, advinda com o pensamento de Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger[6]. Com a pena em punho, Michel de Montaigne é implacável, arguto[7], combativo e até mesmo cético, não raras vezes, considerando que aderiu a alguns pensamentos pirrônicos [Pirro de Elis], e leu[8] muitos textos de Epicuro de Samos, Xenofontes, Sexto Empírico e principalmente de Lucius Annaeus Sêneca [este contemporâneo de Jesus Cristo][9], dentre outros filósofos importantes para a humanidade.

Em voluntário recolhimento estóico à torre de seu castelo [na região de Bordeaux] passa a tratar de temas delicados e espinhosos, mas que ainda têm relevância na atualidade, passados quase 500 (quinhentos) anos. Na verdade, o tema central dos escritos é o próprio filósofo, é o seu próprio ser, seu eu, que, dentro do voluntário exílio, fez da pena sua companheira diária, depositando nos textos todas suas reflexões a respeito do mundo. A leitura de seus Ensaios até daria azo a afirmar de forma bastante segura que não foram escritos a partir de 1572 [quando o filósofo contava com apenas 39 anos de idade], mas se vêm desenvolvendo dia a dia, durante muitos séculos, conforme exposto alhures.

Permitiria afirmar que o Seigneur de Montaigne fez uma leitura crítica, profunda, contundente e equilibrada não só de seu tempo, mas também do presente, sendo certo que muitas mazelas renascentistas também são deste século XXI. Era um homem com visão de futuro, tanto que seus escritos se mantém atuais, e certamente são perenes. Além disso, o retrato sócio-cultural e também político apresentado por Montaigne permite afirmar que o comportamento humano atual também não difere muito [ou quase nada] daquele existente no início da Idade Moderna, em pleno século XVI. A atualidade dos temas abordados pelo filósofo bem reflete aquilo que se pretende expor, mesmo que de forma resumida no presente escrito: O pensamento de Michel de Montaigne, especialmente quanto ao saber e a linguagem [que aqui guardam grande relevo, sendo o tema central deste escrito], merece ser estudado pelo hermeneuta.

Os Ensaios e o Jornal de Viagem, conforme exposto, se mostram perenes e a tinta da pena de Montaigne foi molhada em temas que eram e continuam a ser questionados mais de quatro séculos após a elaboração de suas obras. Em outras palavras, mas com igual alcance, as vicissitudes, as inquietações, as dúvidas de Montaigne são as mesmas do homem pós-moderno, em pleno século XXI. Com efeito, Montaigne tinha ampla e aguçada visão acerca dos mais variados temas, desde aqueles singelos, comezinhos, até os mais contundentes, ásperos e de maior envergadura. Seu saber também lhe permitiu expor os pensamentos de forma bastante clara e despida de ortodoxia e erudição, quase que inequivocamente inerente à significativa parcela dos hermeneutas modernos. É essa a peculiaridade que se sobressai de forma clara: Montaigne não era só de seu tempo, e seu saber lhe proporcionou escrever obras de fôlego, ricas, perenes e efetivamente não adstritas a esse ou aquele século.

A bem da verdade, seu contato desde tenra idade com os filósofos da antiguidade, abriu-lhe caminho para escrever texto de escritor, tal como assevera Pierre Villey[10], de modo que seus escritos convidam o leitor [e também o jurista] a um passeio sobre os trilhos do equilíbrio, do bom senso e da serenidade, para se chegar a alguns aspectos deveras importantes. Evidentemente que aqui não há espaço bastante para apresentar algumas das principais teses escritas por Montaigne a respeito do saber e da linguagem. Mas cumpre trazer ao conhecimento do interessado [principalmente ao hermeneuta] aquelas sentenças consideradas como imprescindíveis e tendentes a demonstrar que a filosofia, aliada aos princípios constitucionais, é um ferramental deveras importante e que não pode ser desprezado, até mesmo nas corriqueiras manifestações judiciais. Ora, nessa linha de pensamento, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein cunhou a seguinte frase: Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo.

Percebendo o intérprete que o direito é pura linguagem e que se sustenta na palavra plena, produz sentido, dialoga na sua aplicação, consoante ensina Ernildo Stein[11], certamente terá condições razoáveis de fazer com que sua capacidade de produção de sentido venha a aflorar, sempre de forma harmônica com o texto constitucional brasileiro, mas tudo depende de seu repertório, de sua bagagem de conhecimento.

Tomando da pena, Montaigne escreve a respeito do saber, e assevera que saber de cor não é saber: é conservar o que foi entregue à guarda da memória. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Desagradável competência, a competência puramente livresca! Espero que ela sirva de ornamento, não de fundamento, segundo o parecer de Platão, que afirma que a firmeza, a honradez, a sinceridade são a verdadeira filosofia, enquanto as outras ciências e que visam alhures são apenas ouropéis[12]. O conhecimento, o aprender e o apreender do sujeito cognoscente é algo deveras importante e que não encontra limites. Estando disposto a conhecer, a apreender e a buscar os ensinamentos, o ser humano torna-se mais sábio (que nada tem a ver com erudição). Por outro lado, se torna muito mais prudente, sensato e equilibrado quando das relações travadas com seus semelhantes, respeitando sempre a natureza, da forma como propugnado pelos estóicos.

No tocante especificamente à linguagem, escreve Montaigne que Tito Lívio diz acertadamente que a linguagem dos homens criados sob a realeza está sempre repleta de ostentações desarrazoadas e de testemunhos vãos, cada qual elevando sem distinção seu rei à extrema linha de valor e grandeza soberana[13].

Primeiramente, a linguagem não carece ser empolada, erudita, rica em detalhes totalmente desprezíveis e que só servem para demonstrar um pseudoconhecimento a respeito de determinado assunto, especialmente quando o tema é o discurso jurídico. Sabe-se, pois, que o direito é diálogo, interage com outros subsistemas, é linguagem viva, e esta deve ser adotada pelo hermeneuta não de forma retórica, confusa e com fins professorais [e por que não dizer com elevado grau de pedantismo, como sói ocorrer], tal como se vê.

Deve a linguagem ser externada de forma simples e sem ares de complexidade, com arroubos retóricos, a fim de que possa ser bem compreendido o discurso de cunho jurídico.

Há manifestações jurídicas extensas, repletas de julgados, transcrições desnecessárias de enunciados legais, reiteração de temas, sem qualquer objetividade. Ora, conforme a Unesco, um texto de 49 páginas já é considerado um livro[14] e não é difícil a empolgação, aliadas às ferramentas tecnológicas, fazer com que textos judiciais ultrapassam tal número de laudas.

As petições hão de ser harmonicamente consistentes, coesas, objetivas, diretas e bem fundamentadas (tal fundamentação não carece ser extensiva, com várias laudas, como sói ocorrer hodiernamente, diante da era da informática); jamais devem ser redigidas na primeira pessoa do singular, por evidente equívoco.

Cabe ao jurista polir seu texto até conseguir o brilho almejado. Para chegar a esse fim, recomendável a leitura dos clássicos do direito e da literatura em geral, mantendo exercício contínuo, diário da escrita, molhando muitas vezes sua pena na tinta.

Afinal, muitos não conseguem transformar linguagem oral em linguagem escrita. Os profissionais do direito têm tal missão.

[1] Michel de Montaigne foi filósofo, advogado, conselheiro da Corte de Impostos de Périgueux, conselheiro do Parlamento de Bordeaux, fidalgo de gabinete do rei de Navarra e prefeito da cidade de Bordeaux em duas ocasiões.

[2] A literatura acerca de Montaigne assevera que o filósofo fez a viagem com o propósito de visitar estações de águas, a fim de tratar de cálculos renais, mas na verdade seu interesse era visitar novos lugares da Europa Central, pois gostava de aprimorar seu saber. Note-se que o Journal de Voyage, publicado apenas em 1774, foi escrito de próprio punho pelo filósofo e em alguns momentos as palavras eram ditadas a um secretário seu, que se encarregava da redação.

[3] Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3ª edição. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2001, pp. 228/284.

[4] Os Ensaios. Livro I. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 73.

[5] Não se olvidando da proporcionalidade [ou da razoabilidade], constante do art. 5º, parágrafo segundo, da Carta Constitucional, critério esse que deve ser difundido e utilizado, não somente na esfera administrativa, mas [também e principalmente] no âmbito do Poder Judiciário.

[6] Afasta-se o sujeito-objeto, para perceber-se o sujeito-sujeito. Mas enquanto o jurista estiver atrelado à filosofia da consciência e imperando o positivismo jurídico, certamente nada será alterado, permanecendo a inefetividade da Constituição Federal, referida por Lenio Streck.

[7] Montaigne – Vida e Obra. Vol. I. Ensaios. 4ª edição. São Paulo: Editora Nova Cultural, coleção Os Pensadores, 1987. Tradução: Sérgio Milliet.

[8] Montaigne foi um grande devorador de livros, e ao cabo de suas leituras fazia anotações de próprio punho no final dos textos lidos.

[9] O pensador Sêneca nasceu em Córdova [Espanha] em 4 a.C., mas foi educado em Roma. A partir do ano 49 passou a ser preceptor [por quase 10 anos] do imperador Nero; retirou-se da vida pública por volta do ano 62 d.C. e faleceu em 65 d.C., sendo que a literatura esclarece  que  foi Sêneca condenado por Nero a cometer suicídio. Cogita a literatura da possibilidade de o filósofo ter tido contato com o apóstolo São Paulo, quando este passou por Roma, e inclusive de eventualmente terem trocado cartas, mas inexiste qualquer confirmação de cunho científico a respeito. Sêneca viveu sempre em equilíbrio, até mesmo quando condenado a suicidar-se. Ensinou, pois, a viver sem ociosidade; ensinou a morrer, que é a única certeza do ser humano.

[10] Os Ensaios. Livro I, cit., LV.

[11] Hermenêutica jurídica e(m) crise, cit., p. 09.

[12] Os Ensaios. Livro I, cit., p. 228.

[13] Os Ensaios. Livro I, cit., p. 21.

[14] Um livro é uma publicação impressa não periódica de pelo menos 49 páginas, exclusiva das capas, publicada no país e disponibilizada ao público. http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13068&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

https://jus.com.br/artigos/84069/michel-de-montaigne-o-saber-e-a-linguagem