Ótimos livros-reportagem lançam nova luz às corrupções política e policial
Dois livros recentes já figuram como leituras bem recomendadas – “obrigatórias”, como muitos dizem – a quem quer conhecer mais dos meandros da corrupção que, há décadas, une políticos a atores econômicos e policiais a outros agentes de maior ou menor poder no Brasil.
Malu Gaspar, em “A organização: a Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo” (Companhia das Letras), e Chico Otavio e Vera Araújo, em “Mataram Marielle” (Intrínseca), clareiam relações históricas e ilegítimas entre políticos ou policiais e seus corruptores – com tais papéis por vezes na pele de uns ou outros daqueles atores.
Tais livros-reportagem dos três jornalistas de O Globo dão contribuições perenes a nossas histórias política e policial (contribuem, de fato, a ambas), fazendo jus ao batido clichê, nem sempre bem aplicável, de que o Jornalismo seria como que um rascunho da História.
O citado subtítulo de Malu Gaspar e a chamada sob o título da dupla (“Como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca”) dão o tom, para além do apelo comercial.
Sim, o mundo – sobretudo em países sul-americanos e da antiga África portuguesa – se chocou com crimes (não só) da Odebrecht; e o duplo homicídio de 2018 e suas apurações – policial e jornalística – revelaram muito de outra rede criminosa, no Rio de Janeiro (houve até testemunhas descobertas antes por repórter).
“A organização” e as relações Estado-mercado no Brasil
Após ter biografado o empresário Eike Batista, ícone do capitalismo nacional em tempos recentes, Malu Gaspar somou a experiência de repórter econômica e política à de biógrafa para investigar bastidores da gestão de um conglomerado empresarial não menos icônico.
Os 25 capítulos de seu novo livro podem ser lidos como episódios de uma série dramática – talvez mais para o jogo sem fair-play de Succession (HBO) que para a mais ritualística The Crown (Netflix), tão ricas em intrigas familiares-corporativas como “A organização”.
A saga recontada dos Odebrecht lembra dramas públicos da família Roy – como impasses sucessórios e negócios de ambição à flor da pele – e dramas íntimos da Casa de Windsor, como os laços conturbados entre duas gerações da família (ou dentro de uma geração). A passionalidade mais cara a brasileiros de todas as classes difere dos retratos anglo-saxões.
Uma virtude do livro é percorrer décadas da gestão da construtora e demais empresas do grupo atentando a dois polos vistos geralmente à parte: suas ações vistosas no mercado – como decisões na Braskem e em leilões aqui e no exterior (com financiamento de bancos estatais), noticiadas em sites e outros veículos; e suas ações subterrâneas junto ao Estado – como os pagamentos ilícitos a militares e civis de várias cores partidárias, lidas de forma parcial na cobertura jornalística (a reboque) da Lava Jato. (Aliás, esse par de reportagens de fôlego atesta o quanto apurações sem lugar no jornalismo diário rendem ótimos livros.)
Leitores se inteiram de fatos curiosos, como o pouco republicano debate entre legisladores e empreiteiros para a recém-finada Lei das Licitações (Lei 8.666/93), a “governança” de recursos não contabilizados da Odebrecht e as críticas a advogados do grupo por autores da chamada “delação do fim do mundo”.
Com prosa límpida que remete a seu trabalho na Exame e na Piauí, a autora reconstituiu momentos e cenários delicados de narrar, como o reencontro (desencontro?) de pai e filho numa prisão e a reunião do fim de 2010 de dois Odebrecht (Emílio e Marcelo) e dois presidentes (Lula e Dilma Rousseff, personagem ainda por merecer um bom perfil biográfico, como sugerem as entrelinhas deste volume).
Também dignos de nota são relatos de reuniões tensas de Marcelo Odebrecht com outros executivos e conselheiros do grupo, com a cúpula da Petrobras (ora clientes do grupo, ora sócios na Braskem, p. ex.), com investigadores da Lava Jato e o respectivo juiz e até com parlamentares aliados na CPI da Petrobras.
Os diários do “príncipe” na prisão são fonte muito bem explorada. Cenas protagonizadas pelo pai, como os contatos iniciais com Lula e discursos em encontros anuais do conglomerado, são igualmente reveladoras de práticas antes inconfessas de um empresariado de mãos dadas com o Estado (três poderes, aliás).
O livro é, por fim, um convite para vermos de perto o ecossistema onde Estado e mercado desenvolvem interações de todo tipo: leem-se relações de parasitismo (um ser hospedeiro e outro hóspede sem perdas alheias), predação (com espécie predadora), canibalismo (um ser devorando outro de sua espécie), mutualismo (com ganhos para espécies distintas) etc… O estádio do Corinthians, hidrelétricas, usinas nucleares, o aeroporto do Galeão e o edifício-sede da Petrobras são exemplos de obras úteis também para repensar tais enlaces.
“Mataram Marielle” e as relações polícia-política no Rio
Depois da biografia a quatro mãos (com Aloy Jupiara) de Eduardo Cunha, um dos maiores donos do poder no Brasil dos anos 2010, o jornalista Chico Otavio se aliou a sua colega Vera Araújo, outra veterana repórter investigativa, em um dos livros mais necessários de 2020/21.
Necessário até por partir de dores íntimas e coletivas sem fim à vista – neste dia 14, se completam três anos do crime a elucidar (v. cronologia do MP/RJ até março/2020).
Enquanto o livro sobre Cunha esmiuçou o percurso de uma ex-eminência de Brasília (v. resenha no JOTA), “Mataram Marielle” reconstituiu as investigações acidentadas do crime que pôs fim a uma mãe e política em ascensão a partir do Rio fora do cartão postal, prestes a tentar ser vice-governadora, e a um pai que iria trocar o trabalho provisório de motorista por um emprego com horizonte de mais segurança não só salarial. (Neto de uma vítima de homicídio não esclarecido, sei que o hiato na vida familiar fica, ao contrário de outros.)
Eis um livro que ilumina outros “relacionamentos estratégicos”, no termo odebrechtiano. Neste caso, no Estado paralelo onde policiais (milicianos ou não) articulam com políticos com graus distintos de visibilidade – e poder.
E no Estado de Direito onde investigadores e investigados ora se aproximam, ora se afastam – e nem sempre do modo mais ordinário (vide a intimação informal dos nomes da “agenda vermelha” da Delegacia de Homicídios).
Quem acompanha a cobertura do caso Marielle/Anderson em O Globo terá grata surpresa ao ver dois responsáveis por ela entregarem esta reportagem que vai “muito além do papel do jornal”, como dizia seu antigo slogan (aliás, os autores driblaram bem a saia-justa de citar uma reportagem de O Globo que reverberou uma denúncia falsa que envolveu certas autoridades policiais em prejuízo do trabalho de investigação).
Há tantos relacionamentos “estratégicos” em jogo neste homicídio duplo e suas investigações que o descortinar dessa teia criminosa vira um desafio considerável, mas que é bem enfrentado pelos dois autores.
Se “A organização” lançou nova luz a laços de parasitismo, predação, mutualismo e até canibalismo e outros na cúpula da Odebrecht e sua clientela política, “Mataram Marielle” atestou como atos e omissões de autoridades estatais e eleitores criam milícias, grupos de extermínio e outros atores operando em zonas escuras das relações polícia-política. Num período de alta violência política como o atual, o livro é mais que um retrato. É um alerta.