Os novos profissionais fora da caixa

Interdisciplinaridade de profissionais com formação dupla privilegia ideias mais completas e soluções mais criativas

Nos últimos anos, principalmente após a mudança na Lei Societária brasileira promovidas pela Lei 11.638/2007 (convergência das normas adotadas no país às normas contábeis internacionais – IFRS), temos visto crescer o número de profissionais que estudam com o mesmo afinco o Direito e a Contabilidade.

A existência de profissionais com essa dupla formação não é propriamente nova. Nas empresas de auditoria independente (as chamadas “Big Four”) é até bastante comum, mas normalmente decorre de necessidade de habilitação profissional formal para o exercício pleno das atividades inerentes a esse tipo de empresa.

A novidade está no planejamento de carreiras que mesclam Direito e Contabilidade com a mesma intensidade e visando de fato uma atuação combinada que pode se dar de diversas formas.

A graduação dupla é só o começo. Esses profissionais seguem o Mestrado em Direito, o Doutorado em Contábeis (ou vice-versa) e se dedicam a pesquisas interdisciplinares que permeiam as duas áreas.

A interdisciplinaridade, como explica Ivani Catarina Arantes Fazenda[1], é uma relação de reciprocidade e mutualidade. Trata-se de prestigiar atitude de abertura, não preconceituosa, em que todo o conhecimento é igualmente importante. A autora explica que a interdisciplinariedade se alimenta da interação e do diálogo e pressupõe engajamento.

Desse tipo de interação surgem ideias mais completas, soluções mais criativas, pesquisas mais holísticas, produções literárias que atingem o mesmo grau de profundidade em duas ou mais áreas.

Esse tipo de pesquisa e atuação se caracteriza pelo grau de intensidade de trocas de conhecimento e o grau de integração real entre disciplinas em um mesmo projeto de pesquisa, levando a um enriquecimento mútuo.

Não por outra razão, a escola moderna (ensino médio e fundamental) vem buscando formas de integrar diferentes áreas do conhecimento. As aulas de STEAM[2], metodologia que reúne conhecimentos de Artes, Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, são um bom exemplo dessa mistura, muito utilizada no exterior há mais tempo.

A visão integrada do Direito com a Contabilidade permite a elaboração de programas de capacitação e conteúdo de disciplinas de pós-graduação mais abrangentes e por isso mais úteis ao público usualmente formado por jovens profissionais.

A contabilidade que um profissional do Direito precisa ou deseja saber não necessariamente tem foco nas mesmas questões lecionadas em cursos de contabilidade para contadores, por exemplo e esses novos profissionais sabem disso!

Nessa toada escolas clássicas formaram grupos de Direito e Contabilidade que se reúnem com assiduidade para o debate de questões que interessam a todos. Pode-se citar o GEDEC[3], iniciativa originalmente da Escola de Direito da FGV, atualmente realizada em conjunto com o Insper e que sempre contou com a presença de renomados professores contadores da FEA-USP, assim como a Mesa de Debates promovida pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT e pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI.

Iniciativas que prestigiam e são prestigiadas por grandes referências nas duas áreas como prof. Nelson Carvalho, prof. Eliseu Martins, prof. Ariovaldo dos Santos, prof. Eduardo Flores, prof. Edison Fernandes, prof. Quiroga, prof. Ricardo Mariz, prof. Schoueri entre outros que generosamente doam seu tempo para enriquecer o processo de trocas e formação de ideias e conhecimento.

Da mesma forma, diversas publicações promovem esse intercâmbio. Cita-se a Revista de Direito Contábil (Associação Paulista de Estudos Tributários – APET, organizada por Marcelo Magalhães Peixoto), a coletânea Controvérsias Jurídico-contábeis, iniciada em 2010 (Ed. Dialética), atualmente editada pela Ed. Atlas, com o apoio do IBDT e da FIPECAFI (organizada por Fabio Silva e Alexandre Evaristo) e a obra Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A, organizada por Sergio André Rocha (Ed. Quartier Latin).

A mescla, porém, não é interessante apenas para o mundo acadêmico. Conhecer contabilidade contribui para que o advogado vislumbre importantes aspectos que podem e devem ser considerados nas consultorias jurídicas (tributárias e societárias) e já alerte seu cliente sobre determinados pontos de atenção.

O conhecimento contábil também pode ser muito relevante para defesas em processos tributários ou processos administrativos no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e até mesmo em contencioso societário.

De outra mão, para que o profissional de contabilidade contribuía de forma mais efetiva para esses trabalhos, usualmente liderados por advogados, é igualmente importante que contadores compreendam a lógica, os métodos e conceitos jurídicos.

A dupla formação também contribui para que profissionais estejam mais preparados para futuros desafios em comitês de auditoria nos quais, não raro, temas contábeis, societários e tributários precisam ser debatidos.

A Ciência Contábil no Brasil, aos poucos está sendo melhor compreendida como disciplina analítica, estratégica e acima de tudo, muito complementar. É alvissareira a constatação de que o mundo jurídico se abre à contabilidade e reconhece os ganhos decorrentes dessa simbiose. É uma quebra de paradigmas que precisa ser festejada![4]


O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:


[1] FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro Efetividade ou ideologia. 6ª ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2011. Disponível em: <http://www.pucsp.br/gepi/downloads/PDF_LIVROS_INTEGRANTES_GEPI/livro_integracao_interdisciplinaridade.pdf>. Acesso em: 28 de janeiro de 2021.

[2] STEAM é um acrônimo em inglês para as disciplinas Science, Technology, Engineering, Arts e Mathematics. Ela é considerada uma metodologia integrada e baseada em projetos, que tem o objetivo de formar pessoas com diversos conhecimentosdesenvolver valores juntamente com os conteúdos abordados e preparar alunos  para os desafios do futuro. Disponível em: <https://tecnologia.educacional.com.br/blog-inovacao-e-tendencias/steam-metodologia-que-precisa-conhecer/>.

[3] Em atividade desde Março/2013 e coordenado por Edison Fernandes (FGV) e Eric Martins (Insper). Disponível em: <https://direitosp.fgv.br/grupos/direito-contabilidade>.

[4] Artigo dedicado aos brilhantes Alexandre Evaristo, Fabio Silva, Eduardo Flores e Edison Fernandes, bons exemplos de profissionais fora da caixa.

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