Existe uma continuação para o livro ‘O sol é para todos’?

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O primeiro livro publicado por Harper Lee foi “O sol é para todos” (To kill a mockingbird), em 1960. Neste, a narradora Scout, de 6 anos, órfã de mãe, percebe que vive numa comunidade racista a partir do julgamento de Tom Robinson, injustamente acusado de estupro e condenado. Este é competentemente defendido pelo advogado Atticus Finch, pai de Scout, na segregada cidade de Maycomb, no sul dos Estados Unidos, na década de 1930.

Com base neste livro pode-se refletir sobre a advocacia e a segregação racial. No Direito de Maycomb o comando da lei é flexível: o júri condena sem provas Tom Robinson, um homem negro inocente, por culpá-lo de sentir pena de uma mulher branca. Alguém poderia concluir que isto é muito próximo do que o Direito é na prática em muitos lugares do mundo.

  • Alguns trechos alimentam a polêmica sobre os motivos da atuação do advogado Atticus neste caso. Ao responder à Scout negativamente sobre se eles iriam ganhar, ele diz: “Ainda que tenhamos perdido antes mesmo de começar, não significa que não devemos tentar”. Ele foi designado pelo tribunal para fazer a defesa de Tom Robinson, supostamente ele realmente queria defendê-lo, e esta seria a razão do desagrado de alguns com a situação. Quando Scout pergunta se ele defende “pretos” responde “Claro que sim” e a repreende por dizer “pretos”.

Outro comentário que o irrita é o incômodo de tia Alexandra em abordar certos assuntos na mesa. Ao que ele responde: “Qualquer coisa que possa ser dita à mesa pode ser dita na presença de Calpúrnia. Ela sabe o que representa para nossa família”. Calpúrnia é uma mulher negra, a governanta, a babá, quem ensina Scout a ler, a mulher da casa e responsável pela criação das crianças.

O outro livro escrito pela autora, em 1957, com 30 anos de idade, foi “Vá, coloque um vigia” (Go, set a watchman). Mas que permaneceu inédito por 58 anos, até seu lançamento em 2015. Talvez por isto tenha algumas incongruências, que leva algumas pessoas a pensarem que se trata de obras independentes.

Nesta obra, Scout não é a narradora, mas aparece como Jean Louise Finch, de 26 anos, junto com seu pai Atticus, agora Sr. Finch, que está com 70 anos. A escritora morreu em fevereiro de 2016, com 89 anos de idade, sem participar da polêmica de que esta seria uma continuação ou não, nem sobre suas semelhanças com a personagem Scout e sua suposta tentativa de manchar a imagem do advogado Atticus Finch como racista.

A linha da trama está no dilema de Jean Louise entre voltar a viver em Maycomb ou continuar em Nova Iorque. Levanta-se a dúvida sobre outros motivos que teriam levado Atticus a advogar para pessoas negras. Uma vez que é revelada sua participação nas reuniões da racista Ku Klux Klan, no Conselho de Cidadãos e seu interesse em evitar que a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor atuasse na cidade. Jean Louise Finch decepciona-se com seu pai, a ponto de acusá-lo de amar a Justiça somente no sentido abstrato.

Mesmo com as explicações de que Atticus participaria das tais reuniões para saber quem as frequenta, permanece a desconfiança de sua filha. No final do livro, seu tio Dr. Finch faz uma síntese explicativa do título da obra ao tentar acalmar a protagonista: “A ilha de cada homem, Jean Louise, o vigia de cada um é sua própria consciência. Não existe essa coisa de consciência coletiva”.

Sobre a discussão de ser ou não uma continuação, alguns podem argumentar que não, que esta não foi uma preocupação da autora. Enquanto outros podem pensar que sim, embora o livro lançado depois tenha sido escrito primeiro. Um tema é transversal em ambos os livros: o amadurecimento. A personagem Scout/Jean Louise Finch cativa quem lê com sua dificuldade de autocontrole, fantasias e decepções.

Numa das passagens que bem expressa a perplexidade diante destas descobertas está: “Que desgraça era aquela que tinha se abatido sobre as pessoas que ela amava? Estava vendo aquilo em toda a sua crueza porque tinha permanecido longe? Era algo que fora acontecendo aos poucos ao longo dos anos? Ou tinha estado sempre ali, na cara dela, mas ela não tinha visto? Não, isso não. O que tinha feito com que homens simples passassem a berrar besteiras a plenos pulmões, o que tinha feito com que pessoas como ela endurecessem e começassem a dizer ‘crioulo’, se jamais tinham usado essa palavra?”.

 

*Este artigo pertence a uma série que discute as relações entre Direito e literatura. Todos os artigos são produzidos por professores que participam do Curso de Extensão em Direito e Literatura na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), realizado neste primeiro semestre de 2018″