Histórico e perspectiva do ensino jurídico no Brasil

Breve anedota histórica sobre a formação do ensino jurídico no Brasil

A história do ensino jurídico no Brasil se confunde com a história da formação do Estado brasileiro. Embora essa afirmação seja forte e, por vezes, entendida com uma dose de autorreferência por aqueles que são formados em Direito, (in)felizmente é a mais pura verdade.

A evolução histórica do ensino jurídico no Brasil pode ser tomado como símbolo de autonomia nacional a partir da Independência proclamada por D. Pedro I, já que os graduados sempre vieram de Portugal, especialmente da Universidade de Coimbra, até que fosse instalado o ensino superior no País. Não foi coincidência que em 11 de agosto de 1827 o primeiro curso do ensino superior foi o direito. Tal escolha advém da opção política do Imperador de fomentar a autonomia nacional a partir do ensino jurídico. Assim, o curso de direito foi o responsável por formar a classe política do País.

De maneira geral, o objetivo do projeto de instalação do ensino jurídico no País foi a criação de uma elite, intelectual, política e econômica, formada para governar o Brasil no século XIX – tanto em cargos políticos, quanto em pilares da burocracia estatal. Portanto, não é difícil de perceber, que, embora o ensino jurídico tenha propiciado a emancipação nacional, isso ocorreu a partir de uma casta que se mantém até hoje repleta de privilégios.

Inicialmente, havia apenas duas faculdades (de direito) no país, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e a Faculdade de Direito de Olinda. Além disso, a magistratura e a política eram o caminho natural dos bacharéis e, por consequência, espalhavam-se pelo território nacional. O bacharel em direito era, assim, figura de grande prestígio social, conforme relata Lília Schwarcz:

O prestigio adivinha, no entanto, menos do curso, ou da profissão stricto sensu, e mais da carga simbólica e das possibilidades políticas que se apresentavam ao profissional de direito. (…) Sinônimo de prestígio social, marca de poder político, o bacharel se transformava em uma figura especial em meio a um país interessado em crias elites próprias de pensamento e direção política.1

Somente o Largo São Francisco emplacou 13 (treze) presidentes da República – José Linhares, Jânio Quadros, Affonso Penna, Campos Salles, Júlio Prestes, Delfim Moreira, Rodrigues Alves, Wanceslau Braz, Arthur Bernardes, Washington Luiz, Nereu Ramos, Prudente de Morais e Michel Temer – sendo que 8 (oito) ocuparam o cargo na Primeira República (ou República Velha), entre 1889 e 1930.

Tudo isso durou enquanto ainda perdurava a crença na concepção liberal de capitalismo. A Crise de 1929 avassalou mundo a fora a ideia de que um Estado poderia funcionar normalmente sem se preocupar em vigiar os assuntos econômicos. A Guerra Fria da segunda metade do século XX, por sua vez, encampou tensões em que os bacharéis tinham pouco espaço, e os economistas, cada vez mais, passaram a ditar os caminhos das políticas estatais.

Perspectivas de transformação do ensino jurídico

Ao longo do século XX, a República de Bacharéis, alinhada com os interesses homogêneos das elites locais, foi gradativamente perdendo espaço para outros interesses concorrentes. O exercício do poder, cada vez mais foi migrando dos assuntos legislativos para os assuntos econômicos. Vejam que até a década de 1930, as principais tensões políticas giravam entorno das relações federativas entre as elites estaduais. Na década de 1980, por seu lado, o assunto que ocupava as manchetes de jornais passou a ser a política econômica e o controle da inflação.

Some-se a isso a crescente industrialização que vivemos desde a década de 1950. A progressiva automação do trabalho e da produção econômica desvia os temores da sociedade, antes preocupada com abusos de poder, agora receosa com a substituição de homens por máquinas. Inevitavelmente, esta é uma preocupação que orienta a condução do Estado no século XX:

Acredito que o vetor dominante, na estruturação e no exercício dos poderes-deveres do Estado, residirá na indisfarçável prioridade a atribuir o pleno emprego – crescentemente ferido pela aceleração da mecanização, da automação, da robotização do processo produtivo. Tudo faz crer que a evolução tecnológica e a aceleração dela ampliarão sempre e crescentemente o desemprego.2

Não poderia ser de outro jeito: o século XX trouxe a nova realidade da globalização, mudança irreparável de interconexão entre os diversos Estados do cenário internacional. Os interesses locais e homogêneos, como aqueles das elites brasileiras até a década de 1930, já não podiam monopolizar os instrumentos estatais de poder. A ideia de um Estado como núcleo único de poder social, concentrado nas mãos de poucos, foi gradualmente se fragmentando, seja no Brasil, seja no restante do mundo.

O modelo de Estado tradicional, base com a qual se idealizou o ensino jurídico brasileiro há 190 anos, paulatinamente está sendo substituído por um modelo de poder participativo, pluralista e descentralizado. As características do Estado monopolizador de poder político, vigorantes até as primeiras décadas do século XX, já não cabem mais na realidade da economia globalizada, demandante de relações reflexivas de poder.

Naturalmente, a atuação do bacharel de direito foi igualmente transformada. Se antes o advogado era o oráculo da lei, conhecedor e conselheiro dos poderes e das proibições legais e da jurisprudência, hoje já não é mais assim. A lei está disponível, gratuitamente, a qualquer um que acesse a internet; os julgados e até mesmo os autos do processo são facilmente acessados diretamente pelas próprias partes. Já não é mais o advogado que informa ao cliente os andamentos processuais, mas o cliente quem cobra providências sobre os despachos disponibilizados no site do tribunal.

O advogado do século XXI já não é mais aquele do século XX, que monopolizava o acesso ao direito e ao Estado. Aquele prestigio dos bacharéis detinham até o começo do século XX, que Lília Schwarcz nos conta, já não é mais realidade. Mesmo na Europa, Ives Dezalay e David M. Trubek descrevem que já não é suficiente a atuação de advogados incapazes de agregar o direito a outras áreas de conhecimento e distanciados dos campos de negociação de interesses; o mercado europeu, interconectado e globalizado, demanda uma nova abordagem dos profissionais de direito3.

Resta, assim, questionar: como deve agir o bacharel do século XXI? Qual deverá ser sua formação? As respostas ainda são diversas e não deixam de ser ainda um exercício mais de expectativa do que de certeza. Para Arnoldo Wald, o século XXI traz um novo desafio para os profissionais do direito: construir um novo direito, baseado em relações de confiança e de colaboração no mundo globalizado e interconectado4. Já para Ives Dezalay e David M. Trubek, o advogado terá de aproximar-se da realidade dos negócios, colaborando com as decisões comerciais e se adaptando às demandas empresariais – não necessariamente, aquelas da lei e do direito5.

De todo modo, o papel do profissional de direito deve se transformar neste século ainda nas suas primeiras décadas. É certo que o ensino jurídico no Brasil deverá também sofrer sofrerá grandes reformulações.

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1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870- 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.142

2 VIDIGAL, Geraldo Camargo. “O Estado do Futuro”. In.: MARTINS, Ives Gandra (coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.

3 DEZALAY, Ives; TRUBEK, David M.. “A Reestruturação Global e o Direito”. In.: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Globalização Econômica: Implicações e Perspectivas. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

4 WALD, Arnoldo. “O Estado na Comunidade Mundial. O Advento do Direito Internacional da Parceria”. In.: MARTINS, Ives Gandra (coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.

5 DEZALAY, Ives; TRUBEK, David M.. “A Reestruturação Global e o Direito”. In.: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Globalização Econômica: Implicações e Perspectivas. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. Publicado em

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