A relação e a própria discussão do Direito pode ser vista em diversas obras literárias. Confira três exemplos:
Vidas Secas, Graciliano Ramos
O romance publicado em 1938 retrata a história de Fabiano, Sinhá Vitória e seus filhos, que, acompanhados da cachorra Baleia, mudam de região de tempos em tempos para fugir da seca. Os problemas sociais, a fome, a miséria e a desigualdade entre segmentos da sociedade são explorados no romance que mostra a realidade brasileira, como a injustiça social. Do ponto de vista jurídico, a obra traz uma reflexão sobre a desigualdade de direitos entre os diversos segmentos da sociedade, além de mostrar como a privação da palavra por parte dos personagens se contrapõe ao excesso das autoridades e da lei.
As bruxas de Salém, Arthur Miller
A história real que se passa em 1692 na cidade de Salém, Massachussets, Estados Unidos, foi retratada em formato de peça, em 1953 e, depois, em filme (The Crucible 1996). As obras mostram como uma histeria coletiva provocou a punição de centenas de pessoas acusadas de atos de feitiçaria. Além de retratar o julgamento dos acusados, a obra retrata um paradoxo nos processos, já que as provas e os fatos se passam em um mundo invisível. Como analisa o professor Lenio Streck, “a verdade é um produto do discurso construído no campo do espectro”.
Fahrenheit 451, Ray Bradbury
O livro, publicado em 1953, retrata um momento futuro quando os bombeiros não são mais responsáveis por apagar incêndios, mas sim queimar livros e qualquer coisa ligada ao pensar. Guy Montag, o protagonista, começa a repensar o seu trabalho quando encontra uma garota que o questiona sobre o vazio de sua vida e a estrutura daquela sociedade. O autor parece antecipar alguns acontecimentos que podemos presenciar hoje na sociedade, como o controle da informação pelos meios de comunicação que, de certa forma, tomaram parte do poder.
“Porque esse é o meu nome! Porque não posso ter outro em minha vida! Porque estaria mentindo e assinando mentiras. Porque não valho a poeira dos pés daqueles que mandou enforcar! Eu já dei a minha alma ao Senhor, deixe-me ficar com meu nome!”. A citação acima foi retirada da obra As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, que também foi tema de filme, lançado em 1996. O trecho em questão, porém, também foi utilizado como argumentação em uma decisão judicial a favor da autora que reclamava de atentado à honra.
A argumentação não só mostra como a literatura ajuda a fundamentar a realidade, mas como o próprio direito se utiliza dessa ferramenta para interpretar a sociedade. Essa relação entre direito e literatura pode ser analisada de três formas: o direito na literatura; o direito da literatura, que trata dos direitos do autor ou de uma obra e de temas relacionados, como a liberdade de expressão; e, ainda, a utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar os direitos, as instituições e procedimentos judiciais, o que seria o direito como literatura.
Esse campo do estudo tem sido ampliado pelas universidades e virou ferramenta de professores e alunos para fundamentar teses e, ainda, ampliar áreas de saber jurídico e da própria realidade. “O aplicador do direito é constantemente demandado a dar respostas a conflitos concretos e diversos, e a literatura justamente abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico, porque é mais sensível às especificidades do humano”, aponta Vera.
“A literatura amplia os horizontes, já que possibilita ao leitor experimentar, de um modo seguro, situações que ele provavelmente jamais viveria. A boa literatura estimula a reflexão e desperta o senso crítico”, complementa Lenio Streck, procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor de Pós-Graduação em Direito na Unisinos-RS.
A comprovação de sucesso dessa mistura pode ser medida pelo programa televisivo “Direito e Literatura”, gravado pela TV Unisinos e transmitido três vezes por semana na TV Justiça. A apresentação do programa é de Streck que, em seis anos, em conjunto com operadores do direito e especialistas da área de Letras e Literatura, já analisaram mais de 180 obras literárias pela visão jurídica.
Novas perspectivas
Para Vera, além de trazer novas perspectivas aos operadores do direito, a literatura antecipa temas relacionados ao universo jurídico. “A ficção literária tem essa riqueza, essa sutileza, essa sensibilidade que permite que o direito às vezes fique até mais bem preparado para o enfrentamento de conflitos que seriam inimagináveis fora da ficção”, diz.
A linguagem, que no direito encontra suas especificidades e na literatura é registrada de maneira mais diversa e livre, também é apontada pelos especialistas como um ponto chave da interpretação jurídica por meio das obras. “Olhando a operacionalidade, a realidade não nos toca, as ficções, sim. Com isso, confundimos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. A literatura pode ser mais do que isso. Faltam grandes narrativas no direito, e a literatura pode humanizá-lo”, finaliza Streck.”
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