Os irmãos Karamázov é o último romance de Dostoiévski. No fundo, ele resume toda a criatividade do escritor, trazendo à baila as “malditas” questões existenciais que o afligiram a vida inteira, com especial relevo para a flagrante degradação moral da humanidade afastada dos ideais cristãos. Cheia de peripécias, a narrativa põe em foco três protagonistas irmãos, representantes dos mais diversos aspectos da realidade russa – o libertino Dmítri, o niilista Ivan e o sublime Aliocha –, a fim de alumiar as profundezas insondáveis do coração entregue ao pecado, corrompido por dúvidas ou transbordantede amor. (AMAZON)
Comentário: obra a ser discutida em Filosofia do Direito
Irmãos Karamazov1 (1880) é a última obra de Fiódor Dostoiévski, um dos mais influentes escritores russos de seu tempo e, sem muita polêmica, da história do pensamento moderno. O livro seria o primeiro de outros cinco contando a história dos “Karamazov” ao longo da história da Rússia Czarista do século XIX, ao estilo de Liév Tolstoi e suas cinco famílias aristocráticas em “Guerra e Paz”, projeto este interrompido com a morte do autor.
Apenas no que toca Irmãos Karamazov, para além da crítica literária propriamente dita, seus admiradores vão desde o físico Albert Eistein, o filósofo alemão Martin Heidegger, que possuía um quadro de Dostoiévski em seu escritório, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que levou o livro consigo para o fronte da 1° guerra, até Sigmund Freud, o pai da psicanálise, que o rotulou como “o melhor romance da história”2.
A história gravita em torno das interações da família dos “Karamazov”3, que tem como centro gravitacional Fiódor, um “devasso” que Freud considerava a representação do “pai da horda primitiva”. Aliocha4 é o irmão caçula, religioso e membro de uma ordem monástica; já Dimitri carrega consigo orgulho e impulso, bem como uma disputa financeira e amorosa com seu próprio pai; e Ivan, um representante do que o autor entendia ser a juventude russa niilista da segunda metade do século XIX, isto é, um ateu e “intelectual revoltado” com a consciência russa impregnada pelo cristianismo ortodoxo.
Há destaque para a introspecção psicológica-moral de suas desavenças, principalmente as de teor religioso-filosófico: Aliocha, aquele o qual Dostoiévski clama no prefácio ser o “herói” do romance, trava diversos “embates” junto a Ivan a respeito de temas como a imortalidade, a existência de Deus e o sofrimento humano. Nessa dualidade vem à tona as diversas dimensões da obra de Dostoiévski como um todo: a camada política do niilismo, já explorada em “Os Demônios”; as consequências do materialismo, como retratado em “Crime e Castigo” e a psicologia do sofrimento existencial de “Memórias do Subsolo”.
Em um debate de Ivan junto aos religiosos, surge a primeira menção de que os valores éticos e as restrições da ação humana nascem da crença e esperança na imortalidade, sem a qual “tudo seria permitido”, já que sem essa possibilidade “não haveria pecadores, apenas famintos”5 – em outras palavras, os humanos não mais seriam “seres morais”, mas apenas dados físico-biológicos6. Esse raciocínio, que é repetido e aprofundado em diversas passagens do romance, é a origem da famosa frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
Ivan argumenta que o pecado é uma das mais poderosas invenções da história: sem ele, é impossível haver culpa e o instituto do crime. A reprovação do ato pecaminoso, assim entendida pelo próprio agente, é a única condenação realmente efetiva. Nem mil chibatadas podem impedir o humano de realizar atos que confia serem necessários para sua salvação, como Soljenítsin, prêmio Nobel de literatura e admirador de sua obra, apontou ao discorrer sobre sua experiência em campos de trabalho forçado soviéticos7. Se a existência é absurda e fonte mor de sofrimentos, refugiar-se na própria consciência parece uma opção lógica.
O controle social verdadeiro, portanto, não passa pela superação da Igreja pelo Estado, mas pelo contrário: passa pela transformação da Igreja em um grande Estado, de modo que fosse extinto o diapasão entre autoridade externa e interna do Eu – “jesuitismo sem cristo”, como mais tarde Dostoiévski nomeou8. Ou, em termos freudianos, o controle externo do “Super-eu”9.
Em suma, Ivan nega a existência de Deus e da salvação na vida após a morte, ao mesmo tempo em que reconhece o infinito poder da ideia na psicologia humana. Por meio de uma das parábolas mais clássicas da história da literatura, Ivan narra a junção dessas premissas em uma discussão junto a Aliocha: o Grande Inquisidor, um líder cristão supremo da Espanha, prende Jesus em seu segundo retorno e o reprova pela sua negação das três tentações no deserto10.
Negar a possibilidade de pão infinito, segurança e de controle político por pura e livre vontade é um padrão demasiado elevado de se exigir da humanidade – um padrão verdadeiramente tirânico e, por que não, excludente, levando em conta que a maioria é completamente incapaz de algo parecido? Se verdadeiramente amava, por que Deus nos deixou sem respostas completas? Por que relegou a humanidade o fardo do livre-arbítrio de agir conforme o bem ou o mal? Quando estava crucificado e foi desafiado, enquanto Deus, a descer da cruz, por que não ofereceu este milagre aos homens e encerrou todas as dúvidas?
Fica nítido que Ivan “ganha” as diversas discussões que trava com Aliocha. Ivan verdadeiramente o deixa sem argumentos ao pontuar que, apesar de todas as condenações aos possíveis aos pecadores, algumas “condenações terrenas” a inocentes, como crianças, jamais poderiam ser revertidas – e o fato de ele se indignar contra um Deus que permite tal fato denota que ele tem tanto ou mais “fé” quanto qualquer religioso11.
Há boas razões para acreditar que isso é proposital: Dostoiévski tenta expor que a vivência das contradições humanas é demasiada complexa para ser abrangida em totalidade por teorias sistemáticas e racionalistas, que naturalmente “soariam” melhor em premissas e conceitos12. O sintoma meta-narrativo mais evidente é a diferença na facilidade com que se encontram grandes frases de efeito de Ivan em relação à Aliocha, tanto no romance quanto em comentários ao romance (como este texto.). Nesse sentido, Aliocha, a despeito de sua inferioridade argumentativa e seus próprios dilemas, apresenta superioridade em suas ações e intervenções no destino dos que o cercam. Ivan, apesar de todo o compadecimento com o sofrimento da “humanidade”, afirma: “Em teoria, ainda, pode-se amar seu próximo, e até mesmo de longe; de perto, é quase impossível.”13.
O descompasso entre suas ideias e seus efeitos danosos nas pessoas que o cercam progressivamente ganha contornos concretos. O clímax se dá com o assassinato de seu pai por um de seus criados, que se especulava ser também seu filho, – evento que Freud considerava exemplar da canalização da agressividade derivada do Complexo de Édipo – justificado por “inspiração” de suas teses de que sem a salvação tudo seria permitido. Após esse fato, Ivan tem um sonho/alucinação em que discute com um homem que clama ser o Diabo, e postula a verdade do acontecimento. Diante da contradição de que; (I) O Diabo existe, portanto, o assassinato de seu pai é condenável ou; (II) A culpa do evento o afeta, a despeito de não acreditar no pecado – e nem mesmo ser o autor direto – Ivan cai em loucura.
Delimita-se, portanto, uma ironia trágica: a fé exagerada na razão “crua” tem tanto ou mais potencial nocivo à mente humana quanto o dogmatismo religioso. No caso de Ivan, a incapacidade de criar seus próprios “valores” e superar as barreiras as quais o homem comum está submetido – a culpa, o pesar de olhares julgadores e o sentimento de limitação, ou basicamente tudo aquilo que Nietszchze considerava parte da “moral do rebanho” – leva a uma revolta de seu inconsciente contra a própria estrutura da realidade.
Porém, há aqui uma sutileza importante: Ivan realiza, à sua maneira, aquilo que a filosofia ocidental denomina “práxis”, que podemos, com certa grosseria, definir como a mútua transformação do homem pela realidade e da realidade pelo homem a partir da ação escorada em teorias. Em outras palavras, um processo dialético de transformação que transcende o idealismo e o materialismo clássicos, principalmente na definição marxista14. O impacto de Ivan não se limitou a discussões com seu irmão ou outros religiosos, tampouco ele apresenta o mesmo “descontrole” em suas ações que seu pai e Dimitri têm em relação a bebidas ou mulheres. Ele ativamente influenciou nas mentes e ações dos envolvidos no assassinato de seu pai com ideias aparentemente perfeitas, ao mesmo tempo em que não conseguiu delimitar as consequências, diretas e indiretas, desse agir no universo a seu redor – a despeito de sua superioridade dedutiva e “certezas” a respeito do mérito das ideias.
Esse, talvez, seja um dos pontos decisivos: não é apenas que o alinhamento entre teoria e prática não cobre suficientemente a zona de penumbra que as consequências indesejáveis de mudanças drásticas geralmente assumem no campo ético-psicológico, mas que talvez ele aumente essa zona, dado que a mente humana não pode prever o próprio avanço, mas pode tentar forçá-lo ou acelerá-lo pela destruição consciente das bases atuais – partindo da premissa que grandes destruições precedem grandes criações. Nesse contexto, como o mentor espiritual de Aliocha bem pontua, todos são responsáveis por todos. Nossas ideias não podem ser simplesmente isoladas das suas consequências naqueles que nos cercam, desse modo, se não conhecemos as consequências dessa destruição, no fundo pouco conhecemos sobre qualquer coisa a este respeito.
O microcosmos de Irmãos Karamazov parece ser um retrato fiel disso: a apologia das respostas completas de Ivan para as grandes questões da alma humana levou a contradições insolúveis entre a atuação na realidade e a estrutura de suas crenças sobre essa realidade. Ivan, a seu próprio modo, tinha tão pouco controle do seu “Eu” quanto Dimitri e seu pai, os “sensualistas”. Possibilidade que John Milton já havia alertado em seu retrato da arrogância intelectual em “Paraíso Perdido”15.
Aliocha, partindo da ideia de que a verdade existe, porém não é esgotável em sistemas como o de Ivan, chegou a respostas mais pragmáticas e efetivas para os problemas morais que enfrentou. Suas respostas também nasceram dialeticamente, porém com uma certa deferência em relação aos resultados da ação em detrimento dos resultados de teorias. Dostoiévski constrói em Aliocha um retrato fiel de seu cristianismo ortodoxo: a virtude e o transcendente estão para além do reino anárquico dos conceitos. Se existe um embate insolúvel entre fé e razão, bem como entre práticas e conceitos, não seria um grande indicativo a favor da primeira o fato de ainda estamos mergulhados em dúvidas? Em outras palavras, o fato da própria razão analítica, apesar de toda a apologia histórica a seu uso, continuar silente sobre todas as grandes questões que um simples livro russo nos propõe não indica algo sobre suas limitações?
No fim, apesar de todo o caos e a angústia em suas páginas, Irmãos Karamazov é um feito humano gigantesco. A obra demonstra de modo contundente e tipicamente russo que nem só no “colorido” está o lado vibrante da humanidade. Apesar da constatação de que “todos são responsáveis por todos” vir em um tom pessimista e em forma de aviso, os caminhos dos Karamazov também dão margem para a beleza da ideia. Uma beleza triste e silenciosa, mas ainda beleza. Se todo ato humano “se assemelha ao oceano, onde tudo se derrama e comunica, toca-se num lugar e isto repercute na outra extremidade do mundo”16, nem só infortúnios e caos podem ser espalhados. Afinal, o próprio livro pode considerado um toque que espalhou e continua espalhando esclarecimento e calor sobre as dimensões da humanidade. Se de contradições vive a alma humana, necessariamente não só males nela habitam.
https://www.google.com.br/search?ei=Dy1CYMGsApSu5OUPhcOssAw&q=comentario+juridico++Os+irm%C3%A3os+Karam%C3%A1zov&oq=comentario+juridico++Os+irm%C3%A3os+Karam%C3%A1zov&gs_lcp=Cgdnd3Mtd2l6EAM6BwgAEEcQsAM6BAgAEBM6CAgAEBYQHhATUMqIA1ihjQNg_5MDaAFwAngAgAHDAYgBtQSSAQMwLjOYAQCgAQGgAQKqAQdnd3Mtd2l6yAEIwAEB&sclient=gws-wiz&ved=0ahUKEwiB8KqgnJnvAhUUF7kGHYUhC8YQ4dUDCAw&uact=5