Diálogos entre Direito & Literatura: Senhora

Senhora (Prazer de Ler) por [José de Alencar, Ana Maria Haddad Baptista]

Publicado em 1875, dois anos antes da morte do autor, Senhora é um dos principais romances urbanos de José de Alencar, e uma de suas críticas sociais mais contundentes. Narrativa dividida em quatro partes, conta a história do casamento entre Aurélia, moça pobre e órfã que acaba se tornando herdeira de grande fortuna, e Fernando Seixas, frequentador dos altos círculos da corte, mas incapaz de manter financeiramente sua vida luxuosa. Apaixonada por Seixas em seus dias de pobreza, Aurélia é trocada pelo amado por uma moça com um dote de trinta contos de réis. Em uma das muitas reviravoltas do enredo, porém, Aurélia acaba herdeira de grande fortuna, e atrai Seixas de volta para si, anonimamente, em troca de uma quantia três vezes maior. No entanto, logo na noite de núpcias ela revela seu expediente e toda a hipocrisia inerente à transação da compra do marido, e a partir de então a relação dos recém-casados se torna um jogo mordaz de intrigas, manobras sigilosas e diálogos ácidos e repletos de subentendidos. Com sua narrativa concentrada na vida ociosa das classes abastadas e sua existência parasitária em torno da corte imperial, Senhora retrata um momento de transformação da sociedade brasileira, em que os valores patriarcais são cada vez mais deixados de lado em detrimento do poderio financeiro da burguesia ascendente e seu poder de influência na vida cotidiana, o que o torna ao mesmo tempo uma obra de arte representativa de um momento definidor da literatura brasileira e um documento precioso de uma transformação social que se mostraria irreversível. (Texto retirado do Amazon)

UMA ANÁLISE SOCIAL E ESTÉTICA

Publicada em 1875, Senhora é uma das últimas obras da carreira de José de Alencar. Ao tematizar o casamento como forma de ascensão social, o autor abre discussão sobre certos valores e comportamentos da sociedade carioca, resultantes de um capitalismo emergente em meados do século XIX no Brasil.

 Sob o argumento de que a literatura constitui uma forma especial de expressar e transmitir uma mensagem, caracterizando-se pela plurifuncionalidade que o discurso poético atinge ao veicular as informações e ideologias, expressas pela organização de elementos específicos que regem a narratividade, pode-se dizer que são esses elementos esquematizados que determinam as concretizações específicas do leitor. Assim, há em Senhora uma análise em profundidade de certos temas delicados do contexto social daquela época, em que são abordados os temas do casamento por interesse, da ascensão social a qualquer preço e principalmente a independência feminina.

Apresentando severas críticas à hipocrisia de seu tempo, pois questiona o uso do dote que regia os casamentos da época e o papel a que a mulher era submetida, sendo preterida em seu amor dependendo das condições financeiras, Senhora é considerado um romance brasileiro precursor de discurso feminista. Porém, embora identifique um perfil feminino que se rebela contra a hegemonia dominante masculina, para uma análise mais substanciosa acerca da configuração da identidade feminina em Senhora, a partir da personagem de Aurélia Camargo, deve-se observar o modo como o narrador se apresenta dentro da história, no plano do discurso ou da enunciação, e os elementos constitutivos do romance no plano da fábula ou da diegese ( plano do enunciado). Nesse pressuposto, para uma leitura fidedigna de Senhora é preciso distinguir plano do discurso e plano da enunciação

( manifestação do ato da fala ou da escrita).

No plano do discurso podemos dizer que o narrador é heterodiegético, pois se valeu de um distanciamento para apresentar o desenrolar dos acontecimentos sem participar da história, o que, de forma ambígua, reafirma a moral vigente. Isto pode ser evidenciado na história de amor de Emília e Pedro Camargo, em que ambos se entregaram de corpo e alma ao amor; ela, de forma idealizadamente romântica, abandonando a segurança da própria família, que era contrária à união e ele, que na imposição de um casamento por conveniência financeira que não o amor, prefere morrer.  Observam-se neste episódio as fortes amarras sociais da época, regida por convenções morais, pois D. Emília Camargo “passava por viúva, pois que essa viuvez não era mais do que manto decente a vendar o abandono de algum amante”, confirmada pelo narrador de que “havia alguns laivos de verdade nessa injusta suspeita”. É uma forma de denúncia social que confirma o status quo da moral vigente.

Outra evidência de ambigüidade entre o plano do discurso e o plano da enunciação quanto à configuração de identidade feminina no romance, é a apresentação de D. Firmina como “mãe de encomenda”, de Aurélia, para acompanhá-la na sociedade, apenas para “condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina”. Se realmente este romance constituísse uma forma de configuração de identidade feminina, o autor não cederia às convenções sociais e morais da época.

Já no plano da enunciação, na manifestação do ato da fala ou da escrita, há um narrador onisciente seletivo que interpreta com palavras as idéias e os sentimentos das personagens funcionando como transmissor e intérprete da visão de mundo das personagens, como a colocação de que Seixas não esperava “se absolver da culpa; mas esperava remi-la pelo amor”. Dessa forma observa-se que o narrador procura desculpar Seixas e atribuir-lhe boas qualidades, enaltecendo suas mudanças quanto ao comportamento no trabalho e com sucessivas crises de consciência pela especulação de seu casamento.  É também no plano da enunciação que se reflete a pseudo-configuração da emancipação da identidade feminina de Aurélia.

Se durante o plano do discurso Aurélia configurava-se como uma mulher altiva, forte e capaz de suplantar o domínio masculino por possuir aquilo que a sociedade impunha ( o dinheiro), é no plano da enunciação que observamos que Aurélia é uma frágil romântica e que a sua aparente força advinda da vingança e do dinheiro não é suficiente para configurá-la como marco de identidade feminina. É o que ocorre quando Alencar insere o narrador na história, procurando entender as motivações e as angústias da alma de Aurélia, mas ciente das limitações e do alcance da obra literária, “limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados”.

“MINHA SENHORA”: UMA INVERSÃO DE VALORES

  Aurélia configura-se no decorrer do romance com uma postura masculina, pois escolhe seu marido, praticamente o compra com seu dote, é autônoma de seus atos, rege liderança sobre seus bens, família “suportava todo o peso da casa” (p.103). Senhora adquiriu uma posição masculinizada, pois o tratamento de “senhor“ era atribuído aos homens. Alencar argumenta que “a natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da mulher de talento, que não se atinge ao vigoroso raciocínio do homem” (p.102), ou seja, foge dos preceitos de que a “última palavra” é a do homem, pois possui o “dom” da persuasão.

O mito de mulher “pura/impura” está impregnado em nossa sociedade, desde os textos bíblicos, as tragédias gregas, as bruxas, as prostitutas, na qual enfatiza que o feminino se personifica no anjo ou demônio. Essas imagens geralmente aparecem na literatura de forma dualista, ora idealizada, ora demoníaca que oscila entre a adoração e a condenação.

Podemos perceber que Aurélia durante toda a narrativa, assume uma postura diferenciada das mulheres burguesa do século XIX, burlando as regras sociais, autoritária e sedutora, como Lilith, mas consagra-se no final do romance à imagem e semelhança de Maria, redentora, boa esposa.

Como relata RODRIGUES E SILVA,

“O romance romântico dirigia-se a um público mais restrito do que o atual; eram moços e moças provindos das classes altas e médias, assim, esses leitores tinha algumas exigências como reencontrar, muitas vezes a própria e convencional realidade e projetar-se como herói ou heroína em peripécias, com o que não se depara a média dos mortais. Assim, muitas leitoras de folhetins sonhavam e se imaginavam no lugar e na posição de Aurélia, e até mesmo de Lúcia”. (p.1)

Entretanto, é devido à recepção que a obra literária alcança que podemos dizer que não ocorre a configuração da identidade feminina na personagem Aurélia, pois a vingança que a move não lhe atribui nada que a destaque se comparada ao universo masculino, ao contrário, representa-a como uma pessoa revoltada que não conseguiu superar uma humilhação, ou seja, ela se inferioriza pelos seus atos, o que não seria bem aceito pelo público de então. Ao se dispor a comprar Seixas, Aurélia nada lucrou, pois no dia de suas núpcias tinha plena consciência de que o amava, de forma que a revelação de seu amor ao marido na conciliação quando este devolveu o dinheiro, não significa que houve amadurecimento e crescimento de sua parte, mas apenas a comprovação de que ela sofreu onze meses por motivo torpe, que só diminui a pessoa; pelo contrário, cedeu espaço para que Seixas se destacasse, se redimisse e conquistasse mais motivos para que fosse amado por ela, confirmando a hegemonia masculina da época.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 “Senhora” pode ser um marco a identificar um perfil feminino que se rebelou contra as imposições morais e sociais vigentes, servindo como elemento de denúncia, mas está aquém de configurar a identidade feminina na literatura brasileira no campo da emancipação da mulher do domínio masculino.

COELHO historicamente conceitua o Romantismo como:

 “Fase em que a sublimação heróica da paixão é assimilada pela Sociedade como valor básico do comportamento ético-amoroso. [Consagração da imagem dual da mulher – pura/impura-, escolha dependente de uma de vontade consciente (heroínas românticas) ou por imposições feita à mulher por circunstâncias sociais injustas e adversas – as decaídas.” (2000, p.93)

Concluímos que nossa heroína enquanto se reveste da postura masculina, sendo senhora, impregna-se de impureza e para sua purificação foi designada a se redimir e pedir perdão, postulando a “sublimação heróica da paixão” do século XIX, que funcionava como uma ideologia de regulamentação de comportamento social.

BIBLIOGRAFIA

  ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991.

COELHO, Nelly Novaes. 500 anos de presença da mulher na literatura em Portugal e Brasil – A literatura como memória cultural. In. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000.

DUARTE, Constância Lima (org) Gênero e representação” Belo Horizonte: UFMG, 2002.

MACEDO, José Rivair. A mulher na idade média.São Paulo: Contexto, 1990.

SICUTERI, Roberto. Lilith: A lua negra. Tradução Telles J. Adolpho S. Gordo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1985.

REISNER. Gerhild. A transformação dos mitos sobre o feminino na literatura brasileira contemporânea. Universidade de Salzburg. (2001)

http://www.ufop.br/ichs/conifes/anais/LCA/Ica2703.htm. RODRIGUES, Renata Rena, SILVA, Francis Paulina Lopes da. O outro papel da mulher em José de Alencar e Roberto Drummond.

https://www.faccar.com.br/eventos/desletras/hist/2005_g/2005/textos/008.html