Defensora pública Maria Fernanda Maglio, autora de ‘Enfim, Imperatriz’, fala sobre a Filosofia do Direito em suas obras
Maria Fernanda Elias Maglio, defensora pública vencedora do Prêmio Jabuti 2018 (categoria conto), concedeu uma entrevista cujo objetivo era falar a respeito das relações entre a sua obra ‘Enfim, Imperatriz’ (Editora Patuá 2017) e alguns temas caros à Filosofia do Direito, tais como “moral”, “violência”, “culpa” e “Justiça”.
A obra é rica em imagens poéticas capazes de evidenciar conflitos densos sobre esses temas. A leitora e o leitor são convidados, por meio das respostas da escritora, a expandir os horizontes de compreensão do livro – que, a essa altura, já deveria figurar entre as leituras obrigatórias de todos que se interessam pela literatura e pelo Direito.
Quando li pela primeira vez ‘Enfim, Imperatriz’, um dos aspectos que mais chamou a minha atenção foi a centralidade do tema da violência nos contos do livro. Você concorda que essa é uma temática relevante na sua obra?
Primeiro aproveito para agradecer o convite da entrevista. É a primeira vez que tenho a oportunidade de falar de direito numa perspectiva literária e de literatura numa perspectiva mais jurídica.
Em relação à pergunta, é verdade que a violência está presente em vários contos, é um dos grandes temas do livro, talvez o maior deles. E violência em sentido amplificado, no sentido também de opressão. Os contos não têm um liame claro entre si, mas a recorrência da violência é uma costura que acaba por estabelecer uma certa unidade entre as histórias.
Você considera essa tendência para a representação da violência algo consciente no seu modo de escrever? Ou acredita que haja outros fatores que tenham influenciado essa inclinação narrativa dos contos?
Não, não é intencional. Até pela maneira como escrevo. Não sei o rumo da história até que comece a contá-la, até que a própria linguagem me sinalize. Não sou uma escritora que consiga direcionar o texto para determinada temática, mas sinto que, quando estou escrevendo, a violência aparece.
Falando ainda sobre a violência que aparece no livro Enfim, Imperatriz, qual a importância da sua atividade/vivência como Defensora Pública para a concepção dessas narrativas?
Acho que existe sim uma relação com o meu trabalho (trabalho como Defensora Pública de execução penal). Essa é a relação mais óbvia para justificar a violência no texto. Mas é uma justificativa confortável também. Não é apenas por conta do meu trabalho que meu texto está tão impregnado de violência. A energia que uso no meu fazer literário é a da violência, é algo que está em mim.
O que faço, enquanto escritora, é não limar a violência. Como escritora, eu preciso ter um compromisso com o fundo da história. Toda história tem um fundo e quem escreve deve se comprometer em não parar enquanto não encontrar esse fundo. Não evito a temática violenta, porque é justamente ela que me auxilia a cavar a história até que chegue ao fundo. Mas não é algo intencional, não procuro a violência, ela aparece.
Em alguns contos, como “Terra Alagada de Sangue”, “Olhos Executados”, “Geni” e “De vaca, de lobo e de homem” essa violência, a meu ver, aparece com força de evidência. É possível dizer que a narradora de cada um desses contos possui uma visão completamente desolada sobre a possibilidade de superação da violência? Ou há espaço para a esperança em Enfim, Imperatriz? Você acredita que o conto “Dezembro de Deserção” poderia ser considerado um contraponto a esse universo árido presente nessas outras histórias?
Acho que sim, mas teria que pensar um a um. “Terra alagada de sangue”, por exemplo, tem uma leitura bem desolada em relação à violência, por conta de uma certa apatia social dos personagens. Em “Olhos Executados”, o narrador está impactado com a cena que assistiu. Mas ele faz parte da roda da violência. Aliás, nesses contos todos, ninguém está ali com a proposta de ser resolutivo em relação à violência. Existe uma ausência de proposta de resolução da violência. Mas não sei se reflete uma maneira minha de enxergar o mundo, talvez seja apenas dos meus narradores.
O que eu penso é que, há muito tempo, a sociedade está buscando uma formulação capaz de varrer a barbárie do mundo. E está sempre tentando achar explicação para a maldade. Mas o fato é que a maldade acompanha a história da humanidade. Em relação a isto sou mesmo bem cética. A violência é do mundo, está no mundo. Há, claro, a necessidade do regramento social, da feitura de leis, normas que minimizem a violência e protejam especialmente os mais vulneráveis. Mas qualquer proposta que tenha por escopo banir a maldade do mundo é falaciosa. Mais que isso, sob a justifica de combate à barbárie é que se comete as maiores barbáries. As condições do cumprimento de pena em privação de liberdade no Brasil são prova disso. Punir a violência com violência gera uma violência ainda maior. Em uma suposta defesa do bem, se comete um grande mau. As maiores violências da humanidade foram praticadas na justificativa do bem.
Acho que “Dezembro de Deserção” pode ser sim considerado uma contrapartida em relação a tudo isso. No conto, o amor tira a narradora da letargia de uma vida sem sofrimento e sem alegria. Ela não entendia o vazio, porque nunca havia sido completada. Ainda que tenha sido abandonada, o amor continuou vivendo nela, como um carimbo.
Existe algum personagem, de um ponto de vista moral, “completamente inocente” em Enfim, Imperatriz? O que isso diz da sua visão sobre o mundo e sobre o papel da literatura na representação e no conhecimento das profundezas da alma e do agir humanos?
Não existe nenhum personagem inocente no livro, porque não existe ninguém inocente na vida. As pessoas são contraditórias e inacabadas. E sofrem muito. Eu me interesso muito por isso: pela complexidade do humano. E a contradição, a falha, a culpa, o sofrimento são atestados de não inocência. A inocência, pelo menos na vida adulta, pressupõe um ser humano sem contradição, sem culpa. Talvez por isso que o conceito de inocência esteja tão ligado à infância.
É esse o exemplo presente no conto “Dezembro de Tamanduás e Salve-rainhas”?
Sim, justamente por ser um conto contado na perspectiva de uma criança, uma narradora criança. Este conto foi inspirado em uma história que minha mãe me contou, da infância dela. Ela morava na roça e, sempre que minha avó ficava doente, ela tinha medo de que morresse, medo de ser sem mãe. É o pavor universal da infância: a morte (real ou simbólica) da mãe. Eu gosto muito de histórias narradas em perspectiva infantil, porque a infância é o olhar inaugural de tudo. A literatura se alimenta disso, desse primeiro olhar. Por isso acredito que o escritor está sempre escrevendo sobre a infância, ainda que não esteja.
“Terra Alagada de Sangue” é uma das minhas histórias favoritas do livro. Qual a sua inspiração para conceber o “Vale do Jaguaçu”, essa espécie de terra condenada, em que a culpa e a religião atuam na determinação da vida injusta e da morte prematura das personagens?
Esse conto surgiu de uma maneira curiosa. Um amigo (Diego Schutt, escritor e professor de escrita criativa) me propôs uma brincadeira de troca de cenários. Ele me dava um cenário e eu desenvolvia uma história. Depois eu fazia a mesma coisa com ele. Podíamos ou não usar a linguagem do outro. O cenário do “Terra Alagada de Sangue” foi ele quem propôs. Ele descreveu a terra, a secura, a infertilidade do solo e o padre. A partir daí criei a história. Outro conto que ele me deu o cenário foi “Olhos Executados”. Isto é prova de que, na literatura, essa concepção de que a ideia é fundamental é bem relativa. Literatura é construção de história. Diego me deu de presente dois cenários incríveis, sou muito grata a ele.
Em suma, qual a importância da “culpa”, na sua visão, em “Terra Alagada de Sangue”?
É justamente esse sentimento coletivo da culpa que paralisa os personagens em “Terra Alagada de Sangue”. Essa ideia de que estão sofrendo as consequências de um pecado ancestral, atávico. Isso, claro, tem uma ligação direta com o universo cristão. No conto, todos estão pagando por um pecado que não é deles. Não sabem ao menos qual é o pecado e nem quem o cometeu.
Eu não sei se acredito em deus, gostaria de acreditar, porque deve ser muito confortável ter fé absoluta, ter certeza de que existe alguma coisa depois da morte. Para acreditar em deus precisa ter muita certeza e eu tenho pouca. Assim como é preciso ter muita certeza para não acreditar. Como sou desprovida de muita certeza de tudo, não acredito e nem deixo de acreditar. É claro que tenho medo da morte, muito, o medo da morte é humano, universal. Mas é justamente a morte que dá a perspectiva da fragilidade da vida. E fragilidade em seu aspecto mais precioso. A vida é rara e frágil. É a morte que nos diz isso.
Como você vê a indiferença como obstáculo para a construção de um mundo mais justo? Você acredita que essa indiferença é retratada nos contos de Enfim, Imperatriz? Em quais contos e em quais personagens principalmente você procurou desenvolver essa temática?
Não procurei desenvolver a temática da apatia, porque, como disse, não desenvolvo os temas de modo intencional. Mas ela está lá. É evidente. O que eu acho é que a realidade em que vivemos hoje no Brasil é tão absurda, o retorno do fascismo que talvez nunca tenha ido embora, que é quase impossível não ser tomado de certa apatia e isso se reflete na literatura, claro. A capacidade de se indignar vai ficando cada vez mais amortecida. E isso é um problema. Ainda acho que vamos viver um momento de convulsão social, porque, quando este poço chegar ao fundo, vamos ter que dar um jeito de sair dele. Mas a indignação de agora é permeada de cansaço.
Eu tenho muito receio de fazer literatura panfletária. Não pelo panfleto em si. Aliás, gosto muito da literatura usada como panfleto. Mas, a literatura feita como panfleto perde o valor literário. E, ao perder o valor literário, também perde o valor como panfleto. As questões relevantes para o escritor devem aparecer de forma orgânica, não artificial. Sou libertária, feminista e de esquerda, é óbvio que minha escrita está impregnada disso, é meu modo de ler o mundo.
Quanto à “culpa”, essa me parece ser uma das temáticas principais também do conto “Olhos Executados” – o policial que se transtorna por se sentir culpado ao ver um assassino ser submetido, pelo governo, a uma experiência científica. Essa experiência retira a alma dos criminosos supostamente mais hediondos. Na sua visão, qual a importância dos dilemas morais que afligem esse personagem? Pode-se dizer que, apesar do final trágico, no conto existe um apelo às ideias de Justiça e de esperança?
Acho difícil falar em esperança em “Olhos Executados”. Se o personagem-narrador tivesse efetivamente um dilema moral, ele questionaria a execução em si. Mas ele assiste a outras execuções e não sente nada, nenhum desconforto. Tenho um outro conto narrado por uma cadeira elétrica, chama-se “636”1.
É uma cadeira elétrica fascista (como não poderia deixar de ser) que fica incomodada com uma execução específica. Nos dois contos, tanto em “Olhos executados” como em “636”, é como se algo tivesse rompido a ordem pré-estabelecida e é justamente isso que incomoda ambos os narradores (o policial e a cadeira elétrica). Mas é um tropeço, um desvio no caminho da perversão. Nas duas histórias as situações se resolvem sem nenhuma ruptura da roda da violência. Nesta perspectiva não há muito espaço para a esperança.
Ainda sobre “Olhos Executados”, você poderia comentar o trecho “É mais fácil acreditar que a loucura explica a barbárie. Não sabia? Pois eu te digo: o povo gosta de explicações que o deixem dormir. Se acreditarem que a maldade está na sandice, dormem o sono pesado dos sãos, confiando que são bons, que serão bons para sempre”?
Essa frase reflete algo que não é propriamente da literatura, mas muito mais do direito. Talvez este seja o conto mais jurídico do livro. A frase é fruto de uma reflexão que fiz no mestrado, alguns anos antes de começar a escrever literatura. Minha dissertação foi sobre internação de adolescentes em conflito com a lei e medidas de segurança, numa perspectiva de como os “saberes psi” (psicologia e psiquiatria) entram em cena para recrudescer a privação da liberdade. Como já disse antes, a violência e o crime acompanham a história da humanidade. Sempre existiu a agressão, a ofensa violenta ao direito do outro. Mas em algum momento o corpo social começou a buscar uma explicação. O ingresso dos “saberes psi” nessa seara jurídica coincide com esta indagação: por que se cometeu tal violência? Porque até então o crime era explicado como a busca de um valor legítimo de uma maneira espúria. Mas, para explicar os crimes muito bárbaros, desprovidos de qualquer motivação legítima, a justiça criminal convidou a entrar em cena os “saberes psi”. E essa relação estreita e promíscua entre direito e psiquiatria é bastante perigosa, porque crime não é sintoma de loucura e nem loucura de crime.
Para além da música de Chico Buarque na qual você se inspirou, qual a importância do conto “Geni” na representação da violência perpetrada contra as mulheres?
Esse conto fala sobre violência, sobre opressão, regramento de como viver e se portar, de como desejar. Acho que é isso: um empréstimo de como eu vejo o mundo, da minha perspectiva. A violência nesse conto é sexual e física, mas é também simbólica, porque a cidade toda violenta essa mulher. Geni foi estuprada por toda a comunidade, não só pelo viajante. É uma metáfora do que acontece na sociedade. Em alguma instância somos sim todos culpados nos casos de violência contra a mulher.
Ouvi de um amigo que existe uma certa vilania na construção dos personagens masculinos em Enfim, imperatriz e eu não posso discordar. O engraçado é que tive e tenho as melhores referências masculinas possíveis: meu pai, meus irmãos, meu marido, meu filho. Mas por que os personagens masculinos aparecem dessa forma? Acho que a construção decorre da leitura de uma sociedade que é inegavelmente machista.
Quando assisti à leitura de alguns dos seus contos na “Casa do Saber” há alguns meses, ao final você comentou que o seu método de escrita baseia-se fundamentalmente “na palavra”. Você poderia, por favor, explicar um pouco esse aspecto da sua atividade como escritora?
Tenho uma quase obsessão pela linguagem. Acredito que literatura se faz por linguagem. Como já disse, uma ideia é só uma ideia e tem o valor de ideia e não de história. História se faz com palavras e são as palavras que sinalizam minha literatura, são elas que me dizem o que eu devo contar.
A literatura, na sua visão, tem um papel importante na representação do mundo tangível? Quais as consequências que você enxerga nesse suposto potencial? Você acredita que a literatura é capaz de transformar a realidade imediata em alguma medida? Eu disse “mundo tangível” ou “realidade imediata”, porque, a meu ver, a literatura, ou mesmo a arte em geral, representa uma realidade, mesmo em suas versões mais fantásticas. A divisão entre “realidade” e “não realidade”, “não ficção” e “ficção”, me parece obsoleta. Gostaria que você enxergasse essa minha fala como uma provocação: qual a sua reação a essa minha afirmação?
Gosto desse entendimento de que a ficção é também realidade, de que não deixa de ser realidade por ser invenção. A literatura é uma versão da realidade. Mesmo qualquer relato não ficcional, que tenha um compromisso com a verdade, é uma versão, e por isso não deixa de ser inventado.
Isto também se relaciona com a discussão bastante atual sobre autoficção. Acho que essas linhas são todas muito tênues, de barreiras borradas. O escritor está sempre falando de si, ainda que não esteja, por isso em alguma medida qualquer ficção é um pouco autoficção. Assim como a autoficção, mesmo que tenha compromisso com a realidade, é também não ficção, porque não se pode contar sem inventar.
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1 A leitora e o leitor encontram o conto em: https://www.germinaliteratura.com.br/2019/maria_fernanda_elias_maglio.htm