Obras literárias ‘indecentes’

Madame Bovary
Pintura Young Lady in a Boat, do pintor francês James Tissot, usada para ilustrar edições do livro Madame Bovary / Crédito: James Tissot, via Wikimedia Commons

Houve um tempo em que processos judiciais sobre a legalidade de obras de arte não se concentravam em discussões abstratas sobre os limites da liberdade de expressão ou sobre o papel do Estado enquanto censor cultural. Houve um tempo em que o debate jurídico girava em torno dos méritos morais e artísticos de cada obra. Vale a pena reconsiderar essa história. A franca abordagem da relação entre ética e arte nos ajuda a perceber em que medida ela também figura, embora de maneira mais tímida ou velada, em julgamentos contemporâneos.

Madame Bovary apareceu originalmente em fascículos ao longo de 1856A primeira edição completa saiu em 1857, depois de uma controvérsia que levou Gustave Flaubert (o autor do romance) ao banco dos réus. Flaubert foi acusado de cometer os “delitos de ultraje à moral pública e religiosa e aos bons costumes”.[1] A denúncia compila diversos trechos de Madame Bovary que são classificados pelo promotor como “lascivos”. Por exemplo:

Começaram lentamente, depois valsaram com mais rapidez. […] Ao passar junto às portas, as orlas do vestido de Emma [Bovary] roçava na calça de seu par; suas pernas entravam uma na outra; ele baixava seu olhar para ela, ela levantava o seu para ele; um torpor a invadia, ela se deteve. Partiram novamente; e com um movimento mais rápido o visconde [que não é o marido de Emma], arrebatando-a, desapareceu com ela até o final da galeria onde, ofegante, ela quase caiu e por um instante apoiou a cabeça em seu peito.

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O promotor multiplica exemplos desse tipo. Embora não sejam muito mais explícitas do que a cena da valsa, ele vê nessas cenas sinais preocupantes de glorificação do adultério. Emma mantém casos que Charles, seu marido ingênuo e bondoso, ignora. É a conivência de Flaubert com o adultério que torna o livro perigoso aos olhos do promotor.

A denúncia não nega a habilidade de Flaubert; o livro é descrito como “uma pintura admirável sob o ponto de vista do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista da moral”. O promotor sustenta, portanto, a tese de que os méritos artísticos de um romance não podem absolvê-lo de uma acusação de imoralidade.

Curiosamente, a defesa não contesta essa ideia; o advogado de Flaubert concorda que o livro mereceria ser censurado se fosse imoral. A sua estratégia consiste em negar que Madame Bovary contenha uma mensagem imoral: afinal, Emma tem um fim trágico, morre cercada de dívidas e abandonada pelos amantes.

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O livro teria, na verdade, uma lição edificante para quem pensa cometer adultério: “onde julgais encontrar a felicidade, encontrareis apenas amarguras.” O argumento convenceu o tribunal. Os juízes censuram Flaubert pelo uso de algumas imagens que “o bom gosto reprova”, mas o absolvem por achar que, no fundo, o escritor tinha boas intenções.

É interessante comparar o debate em torno de Madame Bovary com o que envolveu outra obra famosa: Ulisses, de James Joyce. O livro foi publicado nos EUA entre 1917 e 1920, quando passou a enfrentar problemas jurídicos. Ulisses contém cenas de sexo e masturbação, além de descrever em detalhe um homem enquanto defeca. O livro foi liberado nos EUA em 1933, após uma decisão importante do juiz Woolsey.[2]

O julgamento de Woolsey é direto e eloquente. É dele a frase: “embora, em várias partes, o efeito de ‘Ulisses’ sobre o leitor seja sem dúvida um tanto vomitivo, em nenhuma parte tende ele a ser afrodisíaco.” Nojento, sim; pornográfico, não. Embora leitores tenham diferentes graus de sensibilidade, Woolsey argumenta que o livro não moveria os impulsos de pessoas com “instintos sexuais médios”.

O juiz também dedica alguns parágrafos à análise dos méritos artísticos de Ulisses e da técnica narrativa do “fluxo de consciência”. Trata-se da tentativa de retratar os pensamentos dos personagens com máximo realismo. Na vida real, nós não pensamos de forma linear. Nossos pensamentos vagam de maneira irregular entre passado, presente e futuro; nossas opiniões evoluem e se contradizem em função de estímulos diversos.

Woolsey reconhece Joyce como um praticante exemplar dessa técnica e afirma que ela seria frustrada se não pudessem ser revelados todos os pensamentos de seus personagens, mesmo os mais vulgares: “Se Joyce não procurasse ser honesto no desenvolvimento da técnica que adotou em ‘Ulisses’, o resultado seria psicologicamente enganoso e, portanto, infiel a sua técnica.”

A maior preocupação do advogado de Flaubert tinha sido mostrar que Madame Bovary continha uma mensagem moral. Woolsey, cerca de setenta anos depois, pôde discutir o valor da inovação literária de Joyce independentemente da sua mensagem moral. Mais do que isso: Woolsey julga que as eventuais imagens vulgares são essenciais ao sucesso da  obra de Joyce.

A avaliação de Woolsey é parecida com a opinião do jornalista Delmiro Gonçalves sobre a peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos. A peça foi censurada na década de 1960, durante a ditadura militar brasileira.

Como explica Gonçalves, a linguagem da peça é necessariamente dura: “Num quarto de pensão de terceira classe, onde os moradores são uma pobre prostituta decadente, um rufião e um pederasta, qual a linguagem que um dramaturgo poderia usar para que cada uma das personagens dissesse a sua verdade, fizesse explodir o seu drama?”[3]

Outro jornalista, João Apolinário, sai em defesa de toda peça que “seja estupidamente amordaçada, num atentado à consciência e […] à livre expressão aos quais se opõe uma censura formada por indivíduos sem qualidade para julgar”.

Apolinário defende explicitamente a liberdade de expressão, mas se mantém ligado à ideia de que, às vezes, a proibição de uma obra literária imoral poderia ser justificada. Afinal, ele culpa os censores de julgarem mal a natureza de Navalha na Carne e torce para que a censura venha a ser realizada por “gente inteligente e responsável”.

Do advogado de Flaubert a João Apolinário – passando pelo juiz Woolsey e Delmiro Gonçalves – é possível perceber uma espécie de gradação. Da ideia de que a literatura deve ser edificante, passamos pela ideia de que ela tem licença para ser vulgar quando isso contribui para um projeto artístico original e chegamos (gradual e timidamente) à condenação geral da censura.

Essa variedade de opiniões ainda existe, às vezes escondida por trás da discussão constitucional abstrata sobre a liberdade de expressão. O fato de que a opinião de Gonçalves é mais recente do que a opinião do advogado de Flaubert não significa que a última esteja superada ou não possa ressurgir com força. O jurista que conhece a história do debate terá menos dificuldade para perceber tudo que está por trás de controvérsias jurídicas atuais sobre a legalidade de obras de arte.

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Este artigo é o primeiro de uma série que discute as relações entre Direito e literatura. Todos os artigos serão produzidos por professores que participam do Curso de Extensão em Direito e Literatura na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), realizado neste primeiro semestre de 2018.

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[1] Os autos do processo contra Flaubert, citados neste e nos próximos parágrafos, aparecem como apêndice (pp. 303-360) da seguinte edição brasileira: Madame Bovary, tradução de Fúlvia Moretto. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 2007.

[2] O julgamento de Woolsey está disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/5/182/2250768/.

[3] O comentário de Gonçalves (assim como o de Apolinário, que aparece em seguida) faz parte de uma compilação de artigos de jornal da época: http://www.pliniomarcos.com/teatro/navalha.htm#.